Sábado, 3 de Abril de 2010

Na encosta do Castelo de Monforte

 

Há dias, numa das minhas pesquisas na net, a propósito do topónimo "mornegra", nome por que designamos uma parte do nosso termo, descobri um texto sob o título que aproveitei para este post. E se constituiu uma agradável surpresa para mim encontrar uma alusão à nossa aldeia num site de BTT, muito mais agradável foi, depois de o ler de fio a pavio, constatar que o seu autor era, nem mais nem menos, o meu primito lá da capital. Com efeito, embora eu o desconhecesse, o Pedro gosta das bicicletas e, sendo um amante da natureza, fez uma incursão por terras de Monforte, descrevendo, num texto de rara beleza, os encantos da terra que ele, lisboeta de gema, afinal, também adora. E isso deixou-me tão feliz que não resisti à tentação de transcrever aqui esse maravilhoso texto (espero que o Pedro não se importe que o tenha feito sem a antecipada autorização), associando-lhe uma fotografia que fiz exactamente a partir da Mornegra, mais propriamente do alto das Talhinhas.

Obrigado, Pedro, pelo excelente trabalho com que enalteces esta lindíssima terra.

Um abraço enorme do Tino.

 

 

Na encosta do Castelo de Monforte

psardo:
Apenas 36 horas antes de partir abri a janela quase a dormir e não vi nem uma estrela. O ruído das luzes projectava-se a milhares de quilómetros e vedava ao olhos o prazer de contemplar tantas estrelas, não tantas quantas as que existem, mas ainda assim tantas que não consigo contar. Apenas 12 horas antes de partir bastou espreitar pela janela para as tentar contar, uma a uma, como se lhes conseguisse tocar, até adormecer.

24 horas antes de partir dois ou três, ou seriam quatro, ou muitos, condutores apressados abriram ruidosamente a porta do sono que dormia e fecharam-na bruscamente à minha passagem. Acordei e fechei novamente os olhos à procura da porta, agora inexistente. 1 hora antes da partir dois papa figos, pelo menos julguei que eram papa figos, e também julguei que eram dois, escoltaram-me de perto, muito perto, com melodias, lindas, até à porta do sono que dormia. Acordei e a porta ainda estava aberta, abri os olhos e olhei enquanto desaparecia suavemente ao som da mesma melodia, linda.

Comi, como sempre como, bebi um copo de sumo, como quase nunca bebo porque quase nunca vou pegar nela e partir. O leite cai-me sempre mal e costuma revoltar-se logo na primeira subida. Nos dias em que pego nela, tão poucos, quase nunca, bebo sumo, como quase nunca bebo.

Estavam 6 graus em Aguas Frias, onde a minha mãe nasceu há tantos anos, e a mãe da minha mãe há tantos mais, e a mãe da mãe da minha mãe há muitos mais, quando não havia bicicletas, nem carros, nem estradas, e Águas Frias era tão longe.

Passei ali os meus verões todos entre os seis ou sete anos e os dezasseis ou dezassete, três meses inteiros entre o fim da escola e o início da escola, e ali fui crescendo um bocadinho todos os anos. E ali tenho voltado todos os anos, sempre que posso, mas sempre menos tempo, sempre muito menos dias e muito menos noites, muito menos correrias pelos lameiros, a pé ou a cavalo, às descaradas ou às escondidas, muito menos.

Mas sempre que posso volto, e 36 horas antes de partir já imaginava as estrelas e os papa figos. Desta vez levei-a comigo, queria arejar, fugir do ruído das luzes e dos condutores apressados, inspirar fundo, muito fundo, expirar, sorrir imenso, olhar o céu, cheirar o frio, o estrume, a lenha a queimar, os campos verdes, a barragem, a terra, a geada, os castanheiros, as silvas, as gentes, as casas, as batatas, os enchidos ao fumeiro, a adega do meu avô.

Estavam 6 graus quando parei para tirar a primeira foto, passado já o cemitério onde dorme eternamente a mãe da mãe da minha mãe.

Ia mais ou menos com uma rota traçada, ainda que sem destino, sem pressa de voltar, apenas pelo prazer de ir e depois voltar, era a primeira vez que a levava a ela, ou que era ela a levar-me a mim, ali, não tão longe como há muito tempo era, mas onde ainda mandam os que lá estão, tal como há muito tempo, para lá do Marão.

Ia para Oeste até à mornegra, ia espreitar o cemitério dos bagos que espremi meses antes até darem o néctar que ia provar pela primeira vez poucas horas depois.

Depois subia para a barragem, contemplava aquele absoluto silêncio e continuava, agora para Noroeste, sempre a subir, até Curral de Vacas.

Em Curral de Vacas virava para Norte a caminho de Espanha. O que não sabia é que ia parar para contemplar este castanheiro, provavelmente tão antigo como a mãe da minha mãe, e para o guardar para sempre na minha memória.

Tal como imaginei, cheguei ao cruzamento para Paradela e Casas de Monforte, e virei para Nordeste.

Enquanto descia pelo alcatrão mal tratado e sentia na cara a brisa gelada com tanto agrado quanto uma criança sente o chupa-chupa a desfazer-se lentamente na boca, pensava porque raio a placa que indicava uma das últimas fugas antes de rumar a Espanha estava tão esburacada. Teria lá pousado uma perdiz, ou foi simplesmente um tiro em cheio no descarregar da frustração de um caçador, ou dois, ou três, que nesse dia não viram uma única perdiz, uma única lebre, como quase todos os dias não vêm já há tanto tempo?

Em Paradela ia agradecer à Nossa Senhora da Boa Viagem Aguas Frias já não ser tão longe e ia seguir quase até Casas de Monforte.

Imaginei que as ia ver pelo caminho, mas não sabia antes de partir que era ali, naquele lameiro, com Paradela em pano de fundo. Parei para as observar.

Depois, já apontado a Sul, sai novamente do alcatrão mal tratado, de ao pé das casas e das gentes e do fumo das lareiras e do latido dos cachorros e perdi-me um pouco pelos montes, para trás e para a frente, sempre a tentar um caminho novo, um atalho, um rigueiro, qualquer coisa onde coubessemos os dois. Pelo meio guardei um trilho muito pouco utilizado, mesmo muito pouco, e procurei de novo o rumo ao Sul...

... a caminho do Castelo de Monforte, que em tempos avistou as tropas de Napoleão, primeiro a vir, depois a ir. Foi ali que D. Dinis o quis, e ali o construi, dos sete que fez, o mais forte, o de Monforte!

Mesmo antes de chegar, para recordar a beleza daquele sítio e guardar a vontade de voltar, de voltar a pedalar.

E finalmente iria regressar, passando novamente o cemitério, pela estrada da Igreja, onde três dias depois iria assistir à missa, a última, do padre que tantos anos antes casou os meus pais e me batizou. Mas quando imaginei o meu percurso e imaginei que ali ia passar não o sabia. Nem quando lá passei.

E no fim, mesmo antes de chegar, mesmo por baixo do Castelo... Aguas Frias, a "minha" Aldeia.

Comi e bebi como quase nunca como e bebo, as coisas que as nossas próprias mãos fizeram. E assim foi e assim será se Deus quiser quando lá voltar.
Pedro Sardo

 

 

publicado por riolivre às 15:01
link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Março 2016

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.posts recentes

. Na encosta do Castelo de ...

.arquivos

. Março 2016

. Dezembro 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Maio 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Agosto 2013

. Junho 2013

. Março 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Novembro 2011

. Julho 2011

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Outubro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Março 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

. Março 2007

. Fevereiro 2007

.tags

. todas as tags

.links

SAPO Blogs

.subscrever feeds