Não se pode dizer que Águas Frias tivesse sido, alguma vez, uma terra onde se produzisse muito vinho. E infelizmente, se tivermos em conta os actuais padrões de consumo, também não podemos gabarnos de por estas bandas se ter conseguido algum vinho de grande qualidade. Ainda assim, as nossas terras sempre nod foram brindando com umas pingas que não só nos aqueciam a alma como serviam para convidar os amigos à nossa adega. Era, aliás, em tantos casos, a verdadeira sala de visitas de cada um. E que grandes cavaqueiras e mesmo animação se faziam outrora nas nossa bem cuidadas adegas!
Afinal, cada qual gabava-se de ter colhido a melhor pinga e, mesmo nas situações em que não seria mesmo de muita qualidade, ninguém recusava um copinho na adega do amigo ou do vizinho. Ah, então e quando aparecia um qualquer forasteiro que pretendia namorar uma das nossas meninas! a malta não se fazia rogada e depressa se juntava (ao domingo, claro) na taberna da Tia Adélia ou no comércio de Cimo de Vila (na altura do meu pai) para beber a remeia que o tanço tinha que pagar.
Este pequeno intróito serviu tão só para trazer aqui uma pérola que, até agora, consegui manter minimamente preservada. Digo até agora, porque a propriedade deixou de nos pertencer. Trata-se de um lagar da minha família que, contra algumas vontades, arrisquei manter com o formato original. Tinha pensado mesmo em musealisá-lo. O facto de ter deixado de viver em Chaves dificultou a minha pretensão e, agora, tudo está na mão do Abel Costa que, como me prometeu, não vai abndaná-lo, com toda a certeza.
O lagar fazia parte da casa dos meus bisavós, na Lampaça, e situa-se exactamente por detrás da moradia. foi construido com quatro pedras de granito (inteiras, como se designam aqui na aldeia) assentes, elas próprias, sobre uma fraga. Tendo em conta a inscrição que ainda é bem visível na porta de entrada, a construção data de meados do século XIX. Nada impede que, apesar disso, ela não possa ser anterior. De todo em todo, este tipo de lagar, de varas para os mais eruditos e de TRAVE para nós, é descrito pelos historiadores como dessa época.
As uvas eram pisadas (quantas horas aí passei!) e, passados alguns dias (entrementes tinha que se BAIXAR A CORTIÇA), abria-se o bocal do lagar para que o precioso néctar corresse para uma lagareta, também de pedra, que lhe é adjacente, embora num plano inferior. Inicialmente, como a adega dos meus bisavós se situava ao lado, num plano, também, inferior, o vinho era canalizado, através da parede, para aspipas que se encontravam do outro lado. Com as partilhas, as más partilhas que sempre acontecem quando se dividem as heranças, o lagar ficou para o meu avô e a adega para o meu tio Maximino. Houve que mudar de atitude. O vinho passou a ser retirado da lagareta com o auxilio de cântaros que o transportavam até às pipas. Durante anos viajava, à cabeça das mulheres, até Cimo de Vila ou até ao Casal. Ultimamente, colocaram-se as vasilhas junto ao lagar que passou a servir, também de adega.
Finalmente, retirado o vinho, era preciso espremer o bagaço que cobria o fundo do lagar. E aqui está o que dá importância a este equipamento. Conheci mais dois ou três semelhantes. Contudo, os proprietários, nuns casos, deixaram-nos ao abandono, perdendo todo o valor histórico que hoje lhes poderíamos dar; noutras situações, justamente por não terem alternativa e pretenderem modernizar os procedimentos da elaboração do vinho, transformaram-nos, com a introdução de prensas mais modernas e mais fáceis de manejar.
Este é, portanto, o único exemplar que, na aldeia, mantém a chamada TRAVE, com o respectivo FUSO e o PESO, a pedra que era preciso fazer rodar para apertar o fuso na trave, onrigando esta a descer com o seu peso sobre as tábuas que se colocavam sobre o bagaço, espremendo-o de tal forma que, quanto mais seco ficasse, melhor aguardente iria produzir.
O "meu" lagar é agora pertença do meu bom amigo Abel Costa. Não tenho dúvida que o Abel vai preservar essa jóia do nosso património. Mas lanço aqui um repto à Junta de Freguesia, qual é o de, assumir o lagar como património de interesse local e ajudar na reconstrução do edifício que o acolhe.
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