Ontem foi dia de matar saudades. E não era caso para menos. Já não ia a esta santa terrinha desde o Natal, o que, convenhamos, é um tempão. Pois é, a vida nem sempre nos deixa fazer aquilo que nos apetece e, por muito que nos custe, vamos tendo que protelar alguns dos episódios que a consubstanciam, umas vezes em prejuízo de uns e outras em benefício de outros. Só assim se leva a água ao moinho.
A verdade é que, sempre que me é dada essa possibilidade, aí estou eu a rumar desde a Terra Quente até ao frio da nossa aldeia. E ontem era um daqueles dias em que até me parecia de bom tempo, já que, saindo do nevoeiro que ainda não deixou de cobrir Valpaços, acabei por me deleitar com o bonito dia que a nossa região indicava ter, com um sol radioso que iluminava o casario que se avistava ao longe. Mas eis que, com aproximação, feita a partir de Chaves, começo a perder de vista o nosso vetusto Castelo. De facto, empurrado não sei por quem, o tal nevoeiro que eu pensava ter deixado para trás, foi-se aproximando do nosso roqueiro e, de repente, como que o esmagou contra a montanha donde sabemos que emerge. Aí estava aquele que nos habituámos a chamar, sabe-se lá por que carga de água, o "ceguicho da terra quente", um nevoeiro que, vindo de onde vem, da Terra Quente, é mais frio que o do vale de Chaves. Mas deixemos as explicações acerca disso para os entendidos, aqueles em que muitos não acreditam mas que fazem um trabalho científico muito meritório, os meteorologistas.
Pois bem, apesar de tudo, como o dito não desceu até à aldeia, o sol que a iluminava convidava a uma voltinha. Dei comigo, então, a passar pela escola, que tratei de "escugitar" conveneientemente, e tomei a Rua de Cimo de Vila, inflectindo, depois, para a Rua da Paz, exactamente essa que hoje me traz aqui. Ao começar a descê-la senti um grande aperto. Para além de não ver nada que bulisse - será possível nem sequer se ouvir o trinar de um passarito? -chamou-me a atenção o estado de degradação das casas que outrora foram habitadas, as casas onde viveram famílias que, ou por terem partido para sempre ou por os seus descendentes se terem deslocado para outras paragens, ma deixam a impressão de estarem definitiva e inexoravelmente abandonadas. E lembrei-me dessa imagem do nevoeiro sobre o Castelo, parecendo-me que, também estas habitações, estão a ser esmagadas pelo tempo.
Nesta viveu a família do senhor Tóninho Terruz. Os filhos emigraram. O Manechinho creio que continua em França, à procura do seu sustento e da família. Construiu uma habitação de férias junto ao campo de futebol. Não sei exactamente o que é feito dele, pois, já não o vejo há muitos anos. A Júlia, que também esteve emigrada, já há uns anos que vive com o marido, o Zé do Ti Américo Barbeiro, também nas proximidades do campo de futebol. Finalmente, a Beatriz, confesso que não sei mesmo o que é feito dela. A verdade é que a casa onde julgo terem nascido e onde viveram tantos anos está como a foto documenta.
Aqui viveu a família Gonçalves, Bruno e Hortênsia. Foi talvez das primeiras casas desta rua a serem desabitadas. Admira-me como é que não há um neto ou bisneto que se lembre de pegar nisto e lhe dê melhor destino que o de ir caindo aos poucos.
Mas a Rua faz, de facto, jus ao nome. A Paz, aqui, é total. A última casa a ser habitada também já perdeu os seus moradores, ainda que, desta feita, não esteja absolutamente abandanada à sua sorte. Durante muito tempo, após a morte do meu tio Antero, a tia Balbina ainda aí permaneceu. Mas, com o Manuel em Chaves, o João em Vila Verde da Raia e a Maria Augusta em terras algarvias, não teve alternativa, ou seja, como acontece à maior parte dos nossos idosos, teve que ser internada num lar, neste caso, o de Mairos, perdendo-se desta forma a última resistente ao esmagamento da Rua da Paz.
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